O TRIUNFO DA SEQUELADA

de Luiz Carlos Taveira (*)

Uma jovem paraense vigarizada pela clientela abastada, entre as quais algumas amigas da onça do high society de Belém, viu falir a própria empresa de design de joias. Inconformada com o cano estratosférico e as dívidas astronômicas no Brasil do Real em 2006, ela comprou uma passagem para Portugal, entrou na Europa pelo alto do cano da bota italiana, e sofreu os muitos percalços no exílio dourado de muitos brasileiros que não aceitam os Estados Unidos como rota migratória.

Há um mar revolto entre as ilusões e as desilusões da personagem, na mistura entre autobiografia romanceada e thriller psicológico – sem crime a desvendar, mas com alguns suspenses místicos, sustos de quem se choca com a realidade, e a briga com as armadilhas do Ego, agravadas pelo choque cultural, mesmo em países com idiomas da mesma raiz latina.

Também há no texto a linguagem entre a rebuscada literatura e as novelas populares, no vocabulário misturado do português-brasileiro, incluindo o regional paraense com o de Portugal, e falas com o acento hispânico, o francês e o inglês vindo do linguajar da internet e das canções citadas ao longo da obra.

A narrativa flui no texto, com ou sem contexto e com alguns subtextos, com a miscelânea das técnicas das artes plásticas. Por inteiro, vale-se da linguagem plástica, cujo material veio das ruas poeirentas de Belém, do caminho de terra da Galízia a Compostela, bem como da estrada que leva a narradora e a personagem ao encontro cínico e (auto?) irônico na Bretanha, logo no começo.

Tudo isso é encontrado nas 658 páginas do romance Sequelas, de Karla França, lançado este ano no Brasil pela Autografia (Rio de Janeiro), sob a criação gráfica de Créer des Ailes.

O romance foi escrito com a emoção e com a mente, mas também com a alma desintegrada do espírito e com as vísceras. Sim, Karla França escreve com as vísceras. Usou na obra uma tinta feita de sangue e os fluidos de nervos, estômago, intestinos, baço, fígado, pâncreas, coração e cérebro. Sem esquecer o centro feminino, o que dá à mulher a dimensão da feminilidade: o útero.

Fiquemos só no último órgão, pois não se esperem as situações típicas do uso da vulva de que se vale uma imigrante pobre de posses e cultura na Europa do Euro, de duas guerras mundiais (com uma terceira como sombra) e do que resta da antiga civilização greco-romana, ainda com as contribuições antes ditas bárbaras, como a celta, a ibera, a ostrogoda e a visigoda, para citar as mais célebres.

Salpicado de referências da cultura pop, que incendeia o texto pelas referências a balada do rock ao pop, passando pelo melhor das canções lusas e da MPB, o romance tem isso tudo apenas como pano de fundo para as aventuras interiores e exteriores da personagem multifacetada, dilacerada feito carne bovina retalhada no açougue. Ainda pele referência ao percurso de carro luxuoso pelo já batido Caminho de Santiago, não se trata de livro de autoajuda, muito menos manual de sobrevivência dos imigrantes na Europa, ou grimórios de bruxedos medievais.

Nada de autocomiseração nem a narrativa lamentosa típica da mulher que emigra de seu país para a Europa e transforma-se no clichê das compatriotas em terra estrangeira: trabalhar como prostituta, vigarista, caftina, garçonete, faxineira ou qualquer outra atividade de subemprego, enquanto espera a legalização antes do visto expirar no passaporte verde-musgo.

A personagem deixou claro o propósito de viver honestamente. Por isso, não foi caçar marido rico ou submeter-se à tara de exploradores de situação. Ela até encontrou milionários e prósperos comerciantes, mas evitou que a história terminasse como conto de fadas, ou de fodas, com um casamento de conveniência. Aprendeu que o amor se constrói tijolo por tijolo, quando o conjunto mente-coração (ou coração-mente) é maior que o turbilhão da paixão que o sexo delicioso enseja.

Na verdade, Sequelas, romance de uma personagem com a personalidade destruída que se reconstrói aos poucos, faz de Karla França prosadora digna do ofício como valor genuíno da nova prosa brasileira, temperada inicialmente pela escritora carioca Tatiana Salem Levy, de A chave da casa, e à altura da tradição inaugurada nos anos 60 pela pioneira Lindanor Celina, que se fez primeiro escritora em Belém e foi morar em Paris, enquanto Karla França, seguindo a sequência inversa, foi morar em Paris e tornou-se escritora.

Pode -se dizer que a sequelada triunfou, na condição de autora, de personagem ou de ambas.

Rio de Janeiro – RJ

(*) Jornalista, escritor e poeta.